As práticas de discurso de ódio on-line se apresentam como um desafio para as democracias, especialmente por acionar questões em torno de um de seus pilares, a liberdade de expressão. Buscando compreender as dinâmicas de negociação entre segurança de grupos protegidos e garantia da liberdade de expressão, este estudo investiga o debate público a partir do Twitter e do Facebook em torno do discurso de ódio e da censura. Para isso, primeiro apresentamos um panorama geral das definições e legislações que informam a compreensão sobre discurso de ódio, discutindo as especificidades do contexto on-line e as formas de definição e auto-regulação propostas pelas plataformas. Em seguida, a partir de coleta de dados em redes sociais, especificamente o Twitter e o Facebook, analisamos o debate público em torno do discurso de ódio e da censura, considerando especialmente os picos de discussão sobre os temas e os acontecimentos a eles associados. Por fim, identificamos os principais atores e interações ocorridos no pico máximo de debate sobre discurso de ódio e de censura, a partir de grafos que apresentam uma análise estrutural das redes sociais. O estudo utiliza fontes bibliográficas, documentais e dados coletados no Facebook e no Twitter, posteriormente analisados qualitativa e quantitativamente.
Palavras-chave: discurso de ódio; plataformas digitais; censura; liberdade de expressão; redes sociais.
SÍNTESE DOS RESULTADOS
> A revisão teórica combinada com a análise das plataformas revelou que, embora existam diretrizes para sanções de contas que publicam conteúdos ofensivos é muito difícil e complexa a detecção desse tipo de postagem;
> A pesquisa se focou na coleta de dados sobre discurso de ódio e censura, capturando cerca de 11 milhões de postagens no Twitter e 34 mil postagens no Facebook, entre novembro de 2020 a janeiro de 2021;
> No que se refere ao debate sobre discurso de ódio no Twitter e no Facebook, as postagens se concentraram em torno de temas como misoginia e racismo. O pico de postagens sobre o tema, em ambas plataformas, ocorreu em 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra. As publicações foram intensificadas pela discussão em torno do racismo estrutural com a notícia da morte por espancamento, no dia anterior, de um consumidor negro no Supermercado Carrefour, em Porto Alegre (RS);
> O discurso sobre censura e liberdade de expressão foi intensificado pelas sanções impostas pelas plataformas em contas, como as do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, cujas postagens questionando o resultado das eleições presidenciais foram associadas à invasão do Congresso americano por setores extremistas. A suspensão de contas mobilizou as redes na abordagem sobre a censura nas plataformas em torno da expressão de opinião dos seus usuários, tanto no Twitter como no Facebook.
APRESENTAÇÃO
A manutenção dos regimes democráticos depende, dentre outros fatores, de um equilíbrio saudável entre liberdade de expressão e combate à intolerância, especialmente quando direcionada a grupos minoritários. Tão importante quanto a possibilidade de livre expressão de cada sujeito é a manutenção de um ambiente democrático no qual discursos que representam um ataque à diversidade sejam adequadamente contidos, como os discursos de ódio ou violentos. As possibilidades de expressão pública geradas pelas mídias sociais colocam novos desafios a essa já controversa equação.
Correntes jurídicas diferentes compreendem o papel do Estado na manutenção desse ambiente de formas distintas: países como os Estados Unidos, por exemplo, protegem a liberdade de expressão acima de tudo; já países como a Alemanha colocam limites mais rígidos naquilo que pode ser dito. No contexto on-line, é preciso ainda incluir as posições das próprias plataformas digitais onde muitos desses discursos circulam, que são, em geral, contrárias às regulações estatais e defensoras das auto-regulações.
Considerando a necessidade de um ecossistema onde coexistam liberdade de expressão e segurança dos diversos grupos, a questão dos discursos de ódio é primordial quando falamos de democracia digital. Sua abordagem tem sido crescente tanto em pesquisas mais amplas, como as que investigam a desinformação (BARBOSA et al., 2020), quanto em mapeamentos mais específicos (NERIS et al., 2020), que analisam seus aspectos constitutivos. Neste estudo, apresentamos um panorama geral das definições e legislações em torno do discurso de ódio, discutindo as especificidades do contexto on-line e as formas de definição e auto-regulação propostas pelas plataformas. A partir de coleta de dados em redes sociais, especificamente, no Twitter e no Facebook, analisamos o debate público em torno do discurso de ódio e da censura levando em conta especialmente os picos de menções aos temas e os acontecimentos a eles associados. Realizamos, ainda, uma análise dos principais atores e interações que foram mobilizados a partir dos momentos de maior atividade no debate sobre discurso de ódio e sobre censura, com base em grafos que apresentam uma representação estrutural das redes sociais.
Este é o terceiro policy paper lançado por meio do projeto Digitalização e Democracia no Brasil, uma parceria entre a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP) e a Embaixada da Alemanha no Brasil. Com duração até 2022, o projeto utiliza-se da experiência em pesquisa aplicada de redes sociais e da expertise de análise de políticas públicas da FGV DAPP, construída ao longo da última década.
O objetivo é desenvolver estratégias de enfrentamento e compreensão sobre os novos e iminentes desafios da democracia brasileira — agora representada por um cenário consolidado de extremismo digital e de suas consequências para a sociedade. Nesse sentido, concentra-se, em primeiro lugar, no fortalecimento dos valores democráticos e no desenvolvimento de mecanismos e conhecimentos necessários para promover um debate público digital consistente e profícuo.
METODOLOGIA
Este trabalho utilizou fontes bibliográficas, documentais e dados coletados em plataformas de redes sociais digitais – especificamente o Facebook e o Twitter. A pesquisa bibliográfica informa a primeira e segunda parte deste documento, apresentando o estado da arte da discussão em torno de discurso de ódio em ambientes digitais. A pesquisa documental informa a primeira parte do trabalho, em torno das diretrizes legais vigentes no Brasil, e a segunda parte do trabalho, que aborda especificamente a posição das plataformas em torno do discurso de ódio que ocorre em seu meio. Para o mapeamento dos conceitos de discurso de ódio e diretrizes de comportamento estabelecidas pelas plataformas, foram consultados os Termos de Uso e as Diretrizes de Comunidade do Twitter, Facebook, Instagram e YouTube. Ambos estão disponíveis de forma aberta para consulta em abas específicas do site de cada plataforma, sendo periodicamente atualizados. Além disso, links adicionais encontrados nessas páginas também foram consultados sempre que pertinente. Os registros encontrados neste trabalho dizem respeito aos Termos de Uso e Diretrizes de Comunidade em vigor durante o mês de fevereiro de 2021 nas respectivas plataformas.
No que diz respeito à análise de dados em redes sociais que completa este estudo, a abordagem empírica lançou mão de métodos automáticos de coleta e de classificação de postagens em plataformas de redes sociais. Em um primeiro momento, com vistas à coleta dos dados no Twitter, foi elaborada uma lista de termos que pudesse dar conta do escopo temático sobre o qual o estudo se debruça ‒ isto é, discurso de ódio e, eventualmente, liberdade de expressão. Parte dessa coleta foi realizada na aplicação Trendsmap, que permite o monitoramento em tempo real de postagens com maior engajamento no Twitter, em termos tanto de compartilhamentos quanto de comentários e respostas. Além disso, essa lista de termos foi utilizada para filtrar as postagens feitas durante o período de análise ‒ entre 16 de novembro de 2020 e 06 de fevereiro de 2021 ‒, as quais foram armazenadas em um banco de dados PostgreSQL.
A partir da coleta inicial de dados no Twitter, procedeu-se, então, à classificação dos dados alcançados, com base nas regras linguísticas construídas sobre o tema (RUEDIGER, 2017). Essa etapa constituiu na elaboração de sintaxes de busca orientadas pelos dois tópicos centrais deste estudo, que são “discurso de ódio” e “liberdade de expressão” (e “censura”). Sintaxes de busca equivalem a um conjunto de valores linguísticos, articulados por meio de operadores booleanos (ou lógicos), que se baseia em elementos semântico-pragmáticos com que um dado tópico é geralmente instanciado. Essas sintaxes de busca foram, então, executadas em uma busca textual no banco de dados. Para a coleta e a classificação dos dados no Facebook, por sua vez, o estudo adaptou as sintaxes de busca elaboradas para a classificação dos dados do Twitter ‒ para os dois temas já mencionados, ou seja, “discurso de ódio” e “liberdade de expressão” ‒, a fim de executá-las no Crowd Tangle, uma aplicação de monitoramento de postagens no Facebook vinculada à própria plataforma.
Em que pese o fato da metodologia aplicada se amparar na construção de regras linguísticas estruturadas, o tema alvo da nossa pesquisa, o debate sobre discurso de ódio, é extremamente complexo e, por essa razão, algumas vezes observamos a presença de postagens que lançaram mão de vocabulário simplificado, mas que tinham significados diversos. Esse desafio fez com que tivéssemos que estabelecer alguns filtros após as coletas realizadas, focando nos picos de menções para analisar o engajamento do debate. A análise qualitativa desses momentos em que a discussão se intensifica se torna, nesse sentido, uma estratégia metodológica para lidar com as limitações dos resultados da extração dos dados a partir da elaboração das sintaxes de busca.
>Leia as definições de discurso de ódio na versão completa do estudo em PDF.