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Opinião | Políticos Among Us

Campanhas eleitorais de 2020 acionam cultura gamer como estratégia de comunicação digital

Por Luiza Carolina dos Santos* e Danielle Sanches** ***

Sábado, 21 de novembro, 20h da noite: cerca de 500 mil pessoas se reúnem em frente aos seus celulares, computadores, tablets ou televisão para assistir ao candidato à prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, (PSOL) jogar Among Us com o youtuber Felipe Neto e sua equipe. Na manhã de segunda, o número de visualizações do vídeo passava de 2,5 milhões, mais de 8 mil comentários e 320 mil curtidas. No domingo de tarde, foi a vez de Manuela D’avila (PCdoB), candidata à prefeitura de Porto Alegre, encarar o jogo, em outra live do canal de Felipe Neto, mantendo os expressivos números de views, curtidas e comentários do candidato paulista. Ambos os candidatos concorrem em segundo turno em suas respectivas cidades e tiveram crescimento expressivo durante suas campanhas marcadas por estratégias digitais.

Do ponto de vista da comunicação, essa estratégia se utiliza daquilo que o teórico canadense Marshall McLuhan define como “o meio é mensagem”. O ato de jogar, nesse caso, é a própria comunicação e não o discurso que pode potencialmente ocorrer nesse ambiente. Ao jogar, o que Boulos e Manuela demonstram é a disponibilidade de fazer parte de uma conversação em andamento nesse ambiente, que ocorre nos termos do interlocutor e não apenas daquele que fala.

Essa não é a primeira vez que Among Us, jogo que se tornou popular durante as restrições sociais impostas pela COVID-19, figura no cenário político. Em meados de outubro, a congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez, utilizou a plataforma Twitch para um streaming do mesmo jogo. Assim como Boulos e Manuela, Alexandria também se alinha à esquerda. Esse jogo figura como componente importante da comunicação política já que o objetivo do (s) jogador (es), que incorpora o papel de tripulante, é detectar e eliminar os impostores. Em cada rodada, um ou dois jogadores incorporam os impostores, tendo como objetivo sabotar a missão e matar a tripulação sem ser descoberto.

É importante ressaltar que, ainda no primeiro turno das eleições, Boulos se valeu de outras incursões no mundo gamer: além de uma primeira live de Among Us na Twitch, também esteve presente no Flow podcast, apresentado pelos influencers de jogos Monark e 3K, e lançou seu próprio jogo, o “Super Boulos 50”. Com mecânica simples, o objetivo do jogo é desviar dos adversários e auxiliar Boulos a chegar à prefeitura, conquistando cada bairro de São Paulo – acionando plataformas políticas do candidato, como o combate à violência e a resolução de questões de moradia, saúde e transporte, além de alertar contra os “tucanos que atrasam a cidade”.

Os streamings de jogos e ações direcionadas a um público gamer estão, nos três casos, alinhadas com estratégias de comunicação digital e uso de redes sociais consistentes, que busca não apenas dialogar com eleitores mais jovens potencialmente alinhados com pautas da esquerda, mas também diminuir a distância entre a esquerda e a direita na utilização de meios digitais para a campanha – fato que ficou marcado nas eleições de 2018. Outros candidatos de partidos da esquerda, como Jilmar Tatto (PT) e Fernanda Melchionna (PSOL), por exemplo, também apostaram em comunicação em novas plataformas, como o TikTok. A aproximação do âmbito digital dessas campanhas não ocorre apenas a partir da utilização de plataformas específicas, mas também através dos formatos, linguagens e estética característicos da cultura digital.

As incursões com o público gamer são particularmente interessantes: a percepção de um conservadorismo e alinhamento à direita (por vezes extrema-direita) desse público é bastante difundida tanto entre jogadores quanto pesquisadores da cultura gamer. Entretanto, conforme as práticas de jogo digitais deixam de ser uma cultura de nicho, compondo a socialização de grande parte dos jovens e jovens adultos, essa tendência ao conservadorismo passa a ser minimizada e questionada.

A busca de uma aproximação da esquerda com esse público parece acontecer em um momento estratégico. Voltando a McLuhan, é preciso mais do que falar para um público específico, mas também compreender as modificações sociais que as mídias digitais trazem para as formas de comunicação, inclusive para a comunicação política, e parece que a esquerda começa a compreender esse fenômeno. As redes sociais e plataformas digitais, somadas às tecnologias móveis, trazem modificações relevantes para a forma como consumimos informação e nos posicionamos política e socialmente, que são marcadas hoje pela fragmentação e pela dispersão, sai na frente o político que sabe navegar nessas modificações do contexto comunicacional.

Nas mídias digitais, é possível falar para públicos diversificados e construir narrativas diferentes, que se utilizam dos aspectos de fragmentação e dispersão da conversação: threads no twitter, vídeos no whatsapp, desafios no TikTok, entre outros. Os jogos digitais também são os espaços onde amigos conversam, consomem conteúdo e são influenciados de uma ou de outra maneira, e por essa razão é também nesses espaços que a conversa política deve estar. O discurso político precisa traduzir-se em conversa e, para tanto, é necessário entender onde esse diálogo acontece – e, principalmente, de que maneira. Parece que a esquerda vem compreendendo esse contexto.

*Luiza Carolina dos Santos é pesquisadora da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP) e doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

**Danielle Sanches é pesquisadora da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP) e doutora em História das Ciências pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em cotutela com a Casa de Oswaldo Cruz/FioCruz.

***As manifestações expressas por integrantes dos quadros da Fundação Getulio Vargas, nas quais constem a sua identificação como tais, em artigos e entrevistas publicados nos meios de comunicação em geral, representam exclusivamente as opiniões dos seus autores e não, necessariamente, a posição institucional da FGV.

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